sábado, 23 de novembro de 2019

"TRIBUNA DE MACAU"


Redemoinhos
Não sou esperto nem bruto,
Nem bem nem mal educado,
Sou apenas o produto,
Do meio em que fui criado. António Aleixo

E, o meu rio, sim, o meu meio é o Rio Mondego. Poderia ser outro, ou poderia nem sequer haver rio. Mas não, o feliz acaso quis que o meu rio fosse o mais belo. O mais belo e, para além disso, o maior nascido em território português.
Foi nas suas águas que aprendi a nadar, sem mestre, na represa da nora da Frida, árdua e solidariamente construída pela força de braços fortes dos compartes, espetando estacas a golpes ritmados dos maços, acompanhados de vozes de incentivo, cortando, entrelaçando tojos e sedimentando as camadas de mato com a areia retirada do fundo do rio às pazadas. (Nessa altura não havia fogos como hoje que as matas estavam limpas).
A montante da represa ficava sempre um fundão. Um dia, aí pelos meus 6 anos, quase me ia afogando, mas não, estou aqui por graça de umas braçadas desajeitadas, «á cão», como nós dizíamos.
Ou então porque, «Ao menino e ao borracho põe Deus a mão por baixo».
No verão, nas águas calmas do tempo de antes da Barragem da Aguieira apareciam, por vezes, redemoinhos que vencíamos mergulhando para o fundo dos poços. Nessa altura, nos meus dez, onze anos, já eu era batido nas lides ribeirinhas, designadamente na arte de apanhar barbos à toca.
Hoje está frio por cá, e recordo, em termos de balanço, que ao longo da minha vida todos os sítios onde vivi estão marcados pela proximidade do elemento água, sendo que a sua contemplação e os sons dos seus movimentos me tranquilizam e sossegam.
Depois da Rebordosa – aldeia natal - aconteceu Coimbra, aos 12 anos, para frequentar o Liceu, que o Externato Príncipe das Beiras, em Penacova, do saudoso Dr. Homero Pimentel, apenas lecionava até ao segundo ano. Coimbra e o Liceu Normal D. João III, primeiro, até ao 5.º ano, com o futebol no Campo de Santa Cruz e os primeiros namoricos no Jardim da Sereia. Depois, nos 6.º e 7.º anos, o Liceu D. Duarte e a travessia a pé da Ponte da Portagem, sobre o “Basófias” quase sempre seco no verão e transbordando as margens no inverno, para poupar os quatro tostões do bilhete de trólei. E, por altura das Festas da Rainha Santa Isabel, na primeira semana de julho, eram as noitadas no areal, debaixo da ponte, juntando-me aos conterrâneos que desciam o Mondego de barco, ao sabor da corrente, para participarem nos festejos, munidos dos inevitáveis farnéis e garrafões de vinho tinto. No regresso, era sempre o custo de fim de festa, com o puxar os barcos à sirga rio acima.
Mais tarde, durante o curso de oficiais milicianos na Escola Prática de Infantaria (EPI), em Mafra, o mar da Ericeira ao cair da tarde e a foz do Lizandro e o slide desde o alto da colina da margem esquerda até ao areal, em velocidade vertiginosa. Alguns talvez nem imaginem o prazer que é superar o medo.
E, depois uma recruta dada aos instruendos do Curso de Sargentos Milicianos, nas Caldas da Rainha, e a magnífica Foz do Arelho, na Lagoa de Óbidos à noite. Água, mais uma vez a água está presente!
De seguida, um gélido inverno em Tomar (formando batalhão para a Guiné) temperado por uns copos no Café Estrelinhas, olhando e ouvindo o murmurar das águas do Nabão, que na altura me soavam a lágrimas de mães.
Isto tudo, o que não é pouco, em apenas 21 anos de vida.
Na ida para a Guiné foram cinco dias a bordo do Uíge, o meu batismo de mar, e o deslumbrante espetáculo dos peixes voadores sobre o convés. E, na Guiné foram, ainda que a espaços, as intranquilas águas do Geba, em Bolama e em Buba, e do Corubal, no Saltinho.
Depois da Guiné, Coimbra e novamente o Mondego e a minha cidade eterna das tasquinhas de portas de batente, dos ramos de loureiro anunciando a chegada de vinho novo, de petingas em pasta de ovo, de iscas de fígado e de bifanas: O “Mija Cão”, o “Mija Gato”, o “Pinheiro”, o “Machado”, o “Costa”, a “Cova Funda”, o “Carvalho”, e tantos outros que ou já despareceram na voragem da modernidade ou na passagem dos anos na minha memória.
Nos idos anos setenta do século passado, aconteceram Espinho e Aveiro. E quantas sestas dentro do carro encostado aos paredões do molhe norte ou na Barra, embalado pelo som do bater das ondas nas pedras dos paredões?
 Era a idade do amor e do romance.
Depois Macau, o Rio das Pérolas nacarado e a Baía de Hac Sa ou a Praia de Cheok Van. Não sei que dizer hoje sobre Macau. São sentimentos confusos, de perda, agora que as vistas para o rio estão cada vez mais tapadas, as águas das praias poluídas e as liberdades vigiadas. Coloane foi, durante anos, o meu retempero emocional, no saudoso «Restaurante de Hac Sa», do amigo Norman, em companhia da «minha» garrafa de Dimple, o meu uísque da saudade, do qual aprendi a gostar na Guiné, a meias com o Old Parr.
E, já fez um ano que cá estou, feliz, de regresso ao meu chão de raiz. A vida é isto mesmo, redemoinhos e calhaus rolados pelas águas correntes, sempre em movimento. Carpe diem, amigos, que, cada vez que parte um de nós, sinto que a vida é curta.

Por:
Marques da Silva
Ex.Alferes Miliciano da 3ª Companhia

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