Redemoinhos
Não sou esperto nem
bruto,
Nem bem nem mal educado,
Sou apenas o produto,
Do meio em que fui
criado. António Aleixo
E, o meu rio, sim, o meu meio é o Rio Mondego. Poderia
ser outro, ou poderia nem sequer haver rio. Mas não, o feliz acaso quis que o
meu rio fosse o mais belo. O mais belo e, para além disso, o maior nascido em
território português.
Foi nas suas águas que aprendi a nadar, sem mestre, na
represa da nora da Frida, árdua e solidariamente construída pela força de
braços fortes dos compartes, espetando estacas a golpes ritmados dos maços, acompanhados
de vozes de incentivo, cortando, entrelaçando tojos e sedimentando as camadas
de mato com a areia retirada do fundo do rio às pazadas. (Nessa altura não
havia fogos como hoje que as matas estavam limpas).
A montante da represa ficava sempre um fundão. Um dia,
aí pelos meus 6 anos, quase me ia afogando, mas não, estou aqui por graça de
umas braçadas desajeitadas, «á cão», como
nós dizíamos.
Ou então porque, «Ao menino e ao borracho põe Deus a mão por baixo».
No verão, nas águas calmas do tempo de antes da
Barragem da Aguieira apareciam, por vezes, redemoinhos que vencíamos
mergulhando para o fundo dos poços. Nessa altura, nos meus dez, onze anos, já
eu era batido nas lides ribeirinhas, designadamente na arte de apanhar barbos à
toca.
Hoje está frio por cá, e recordo, em termos de
balanço, que ao longo da minha vida todos os sítios onde vivi estão marcados
pela proximidade do elemento água, sendo que a sua contemplação e os sons dos
seus movimentos me tranquilizam e sossegam.
Depois da Rebordosa – aldeia natal - aconteceu Coimbra,
aos 12 anos, para frequentar o Liceu, que o Externato Príncipe das Beiras, em
Penacova, do saudoso Dr. Homero Pimentel, apenas lecionava até ao segundo ano.
Coimbra e o Liceu Normal D. João III, primeiro, até ao 5.º ano, com o futebol
no Campo de Santa Cruz e os primeiros namoricos no Jardim da Sereia. Depois, nos
6.º e 7.º anos, o Liceu D. Duarte e a travessia a pé da Ponte da Portagem,
sobre o “Basófias” quase sempre seco no verão e transbordando as margens no
inverno, para poupar os quatro tostões do bilhete de trólei. E, por altura das
Festas da Rainha Santa Isabel, na primeira semana de julho, eram as noitadas no
areal, debaixo da ponte, juntando-me aos conterrâneos que desciam o Mondego de
barco, ao sabor da corrente, para participarem nos festejos, munidos dos
inevitáveis farnéis e garrafões de vinho tinto. No regresso, era sempre o custo
de fim de festa, com o puxar os barcos à sirga rio acima.
Mais tarde, durante o curso de oficiais
milicianos na Escola Prática de Infantaria (EPI), em Mafra, o mar da Ericeira
ao cair da tarde e a foz do Lizandro e o slide
desde o alto da colina da margem esquerda até ao areal, em velocidade
vertiginosa. Alguns talvez nem imaginem o prazer que é superar o medo.
E, depois uma recruta dada aos instruendos do Curso
de Sargentos Milicianos, nas Caldas da Rainha, e a magnífica Foz
do Arelho, na Lagoa de Óbidos à noite. Água, mais uma vez a água está
presente!
De seguida, um gélido inverno em Tomar (formando
batalhão para a Guiné) temperado por uns copos no Café Estrelinhas, olhando
e ouvindo o murmurar das águas do Nabão, que na altura me soavam a lágrimas de
mães.
Isto tudo, o que não é pouco, em apenas 21 anos de
vida.
Na ida para a Guiné foram cinco dias a
bordo do Uíge, o meu batismo de mar, e o deslumbrante espetáculo dos peixes
voadores sobre o convés. E, na Guiné foram, ainda que a espaços, as
intranquilas águas do Geba, em Bolama e em Buba, e do Corubal, no Saltinho.
Depois da Guiné, Coimbra e novamente o Mondego e a
minha cidade eterna das tasquinhas de portas de batente, dos ramos de loureiro
anunciando a chegada de vinho novo, de petingas em pasta de ovo, de iscas de
fígado e de bifanas: O “Mija Cão”, o “Mija Gato”, o “Pinheiro”, o “Machado”, o
“Costa”, a “Cova Funda”, o “Carvalho”, e tantos outros que ou já despareceram
na voragem da modernidade ou na passagem dos anos na minha memória.
Nos idos anos setenta do século passado, aconteceram
Espinho e Aveiro. E quantas sestas dentro do carro encostado aos paredões do
molhe norte ou na Barra, embalado pelo som do bater das ondas nas pedras dos paredões?
Era a idade do
amor e do romance.
Depois Macau,
o Rio das Pérolas nacarado e a Baía de Hac Sa ou a Praia de Cheok Van. Não sei
que dizer hoje sobre Macau. São sentimentos confusos, de perda, agora que as
vistas para o rio estão cada vez mais tapadas, as águas das praias poluídas e as
liberdades vigiadas. Coloane foi, durante anos, o meu retempero emocional, no
saudoso «Restaurante de Hac Sa», do amigo Norman, em companhia da «minha»
garrafa de Dimple, o meu uísque da saudade, do qual aprendi a gostar na Guiné,
a meias com o Old Parr.
E,
já fez um ano que cá estou, feliz, de regresso ao meu chão de raiz. A vida é
isto mesmo, redemoinhos e calhaus rolados pelas águas correntes, sempre em
movimento. Carpe diem, amigos, que,
cada vez que parte um de nós, sinto que a vida é curta.
Por:
Marques da Silva
Ex.Alferes Miliciano da 3ª Companhia
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