Guiné: maio de 1973
“O ditador de cada
um de nós vive em nós. E o nosso maior ódio é pela parte que nos domina e
vence. Não há hoje homem no mundo que ao fim do dia não tenha um crime a
roer-lhe a consciência: a vilania de ter bajulado um superior, a humilhação de
não ter colaborado num protesto, a desonra de ter aplaudido uma mentira”.
Miguel Torga, Diário, IV, 3.ª
edição, página 151.
A guerra colonial
ainda é um tabu em Portugal. Na verdade o dinheiro que os soldados enviavam
compulsivamente para Portugal mataram a fome a muitas famílias, ajudaram a
melhorar muitas habitações e, por isso, calaram o repúdio da guerra. É essa a
humilhação de muitos daqueles que nunca contra ela protestaram.
É, pois, urgente
fazer a sua história enquanto há testemunhos vivos. Sob pena de estarmos a «aplaudir»
mentiras como aquela de que poderíamos aguentar a guerra colonial indefinidamente
e que, por isso, a descolonização da forma como foi feita, necessariamente
apressada face ao contexto histórico, foi desastrosa. Como adiante melhor se
verá a situação militar, pelo menos na Guiné, era insustentável.
É também importante fazer a história das vidas
anónimas destruídas pelos traumas de guerra. Este aspeto julgo que nunca foi
explorado e começa a ser tarde. Se tiver tempo, disso me ocuparei no futuro
próximo.
É pois preciso não esquecer.
É um dever de todos nós que lá estivemos lembrar, sem saudosismos de regime ou
heroísmos descabidos, aquilo que foi para os povos africanos e português aquela
guerra.
Lá longe, no mato, o
pior, para além dos mortos e dos estropiados, era o isolamento, o
desajustamento a meios culturais diferentes, a revolta, a impotência, a
constante insegurança, a fome e a doença. E, na Guiné, pelas notícias que nos
chegavam sobre o fornecimento de armas sofisticadas e de apoio militar ao
PAIGC, acresciam os receios da nossa impotência em termos humanos e materiais
para lhes fazer frente. Em Aldeia Formosa, por exemplo, os nossos radares
detetaram por várias vezes movimentos de meios aéreos adversos. E, por esta
altura, foi abatido e morto o meu conterrâneo Tenente-Coronel piloto aviador,
Almeida Brito, pelos mísseis terra-ar da guerrilha. Os abastecimentos estavam
condicionados pelo facto de os voos de aeronaves estarem fortemente ameaçados e
de a circulação de meios navais estar igualmente condicionada pela deteção de
minas aquáticas.
Pensarão alguns que
isto não passa de efabulação saudosista. Não. É a pura realidade, a qual consta
da Ata de uma reunião no Comando Chefe, realizada no dia 15 de maio de 1973,
entretanto desclassificada, e cujo conteúdo, neste e noutros artigos seguintes,
passarei a transcrever para que conste e não se conspurque a memória daqueles
que lá estivemos.
Caros amigos e
camaradas de armas, segundo a referida ata, o PAIGC (Partido Africano para a
Independência da Guiné e Cabo Verde) dispunha, ou estava em vias de obter:
apoio ilimitado da URSS; pilotos mercenários; mísseis terra-ar e terra-mar;
minas aquáticas; mais 6 aviões, 26 pilotos; carros de combate; três vedetas
rápidas; unidades de tropas não
africanas (Cuba; Argélia, URSS, etc). E, Spínola estava num dilema porquanto
Portugal não tinha dinheiro para comprar os meios militares que a situação
exigia.
Na referida reunião
estiveram presentes, no Quartel-General, o Comandante-Chefe, General António de
Spínola; os Comandantes-Adjuntos Comodoro António Horta Galvão de Almeida
Brandão, Comandante da Defesa Marítima; Brigadeiro Alberto da Silva Banazol,
Comandante Territorial Independente; Brigadeiro Manuel Leitão Pereira Marques,
Comandante-Adjunto Operacional; Coronel Gualdino Moura Pinto, Comandante da
Zona Aérea de Cabo Verde e Guiné; Coronel Hugo Rodrigues da Silva, Chefe do
Estado-Maior do Comando-Chefe e os Chefes das Repartições de Informações e de Operações
do QG do Comando-Chefe, respetivamente Tenente-Coronel Artur Batista Beirão e
Tenente-Coronel Mário Martins Pinto de Almeida.
A abrir a reunião o
General Spínola disse: «Estamos de novo em presença de ponderosas determinantes
de uma reavaliação da situação no TO (Teatro
de Operações), face à evolução há muito prevista e recentemente verificada,
e perante a qual se impõe não só a tomada, no plano interno, de medidas imediatas
que permitam fazer face aos aspectos mais prementes da nova ofensiva que
defrontamos, como ainda a consideração do grau de afectação sofrido face ao
aumento de potencial do IN (Inimigo), em
ordem à definição urgente dos meios essenciais a mobilizar com vista à continuação
do cumprimento da missão». O General Spínola realçou ainda a «precariedade dos
meios actuais» face ao «súbito agravamento registado e na previsão da sua
continuidade a ritmo mais acelerado».
Foi neste cenário que
a minha companhia recém-chegada de Bolama ao teatro de operações (a 3.ª
Companhia, do Batalhão de Caçadores 4513) participou na, porventura, maior e
mais violenta operação denominada “Balanço Final”, com o objetivo de Ocupação
de Nhacoba, juntamente com a Companhia 8351 sedeada no Cumbijã e com a
Companhia de Caçadores 18. E aí, em combate direto e prolongado, sentimos bem
na pele o mencionado reforço de meios das forças contrárias.
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